sexta-feira, 1 de julho de 2022

Miguéis

 Tal como no ano anterior, agora, no «734», texto de Miguéis; servem os comentários de Setembro de 2021 [...]

RECORTES:
     Logo de manhã cedo, o empreiteiro circula pela obra, com o meio charuto entalado entre os dentes, a barba crescida, o chapéu amachucado para a nuca, as calças arregaçadas, e um ar de permanente inquietação. Chove a cântaros, e em volta da casa é um chavascal. Ele não para, escorrega e pula pesadamente na lama argilosa da cerca, tropeça nos materiais, destemperando em pragas que lhe saem de mistura com a saliva, negra do charuto mastigado. Anda de guarda-chuva aberto e veem-se-lhe as ceroulas de fitas de nastro. Aquela casa é o seu pesadelo. Pelas salas sem conta, os operários trabalham dispersos – canteiros, pedreiros, estucadores, carpinteiros, pintores, eletricistas, canalizadores… 
     – Estas janelas ainda estão sem aparelho! A chuva inundou este quarto! O guarda, ponho-o na rua se me torna a deixar as janelas abertas! 
     – Mas as janelas ainda não têm vidros… 
     – Pois já deviam ter! Que faz o vidraceiro, que ainda não apareceu? 
      Tudo lhe corre às avessas. Todos os dias há alterações no projeto, vistorias, ideias novas. A voz tonitruante anda por todas as salas, por todos os andares, como um ciclone. E o cuspo negro, do eterno meio charuto apagado. Por todos os cantos trabalham homens, ajoelhados, de cócoras, em pé, trepados em escadotes, perdidos ao rés do teto: em silêncio, obstinados, resignados, a apurar, a retocar, a embelezar a casa do rico, dum homem qualquer, que eles nem sabem quem seja. [...] 

José Rodrigues Miguéis, «O Acidente», Onde a Noite se Acaba (1946), 7.ª ed., Lisboa, Estampa, 2000, pp. 192-194