segunda-feira, 19 de maio de 2025

«Nomes que causam estranheza», -«os construtores da ponte sobre o Tejo»

 -  [alcançada a p. 82 - de 310];

RECORTE(s):

    [...] Onde cabiam dois, cabiam mais, uma fila de operários virados para o Tejo  ainda  sem ponte, o meu nome é Ivo Pastor e venho de Ourém, pastor era o meu pai e o pai do meu pai antes dele, o nome ficou, mas sou montador, e não pastor, e houve outro que lhe perguntou, Ourém é perto de Fátima, por acaso não terás por família outros pastores que juraram lá ter visto a Virgem Maria? e o Ivo Pastor respondeu, nunca pus os pés em Fátima, resta saber se a Virgem Maria pôs, e o outro que tinha feito a pergunta apresentou-se, eu sou o Lenine, soldador, venho daqui mesmo, de Alcântara [...] Eu chamo-me João Pança, sou electricista,  e venho de Nisa, vens de longe, disse alguém, [...] e mais um homem falou, de mais perto sou eu, que chego de Arroios para operar gruas, chamo-me Zé Silva e faço gosto em conhecer-vos a todos, e eu chamo-me Vicente Boa Morte, raio de nome, disse o João Pança, e o Vicente mostrou os dentes falhos e ainda sujos de chocolate e disse, é o meu, ao que Zé Silva acrescentou, em tantos milhares de homens não faltarão nomes que causem estranheza, já ouvi falar de quem se chamasse Zarolho, Ai-Ai, Pécurto, Pechincha, Pila, Cara d'Anjo, Tirapicos, ei, interrompeu o Victor, Tirapicos me chamo eu, ora vês, disse o Zé, e de onde vens tu, Tirapicos, venho de Sintra. Um último homem juntou-se à fila, chamo-me Tito Brandão, venho do Cacém todos os dias para dar serventia na ponte, e piscou o olho ao Victor enquanto se apresentava, era o mesmo homem com quem  dividira a cela e o pátio no Linhó, companhia que o rapaz até dispensava, certos passados desejam-se enterrados, o mais fundo possível, mas o mundo é tantas e tantas vezes demasiado pequeno para deles fugirmos.

Nuno Duarte, Pés de barro, 2024, pp. 53-54