terça-feira, 28 de maio de 2024

«As mãos dos poetas», Tatiana Faia

  - «mãos sujas, mãos limpas...», hoje, ainda na Série «Revolução já!, Poesia Pública» , Três Estrofes de um poema com nove, de Tatiana Faia:

[...]

tudo isto às vezes
confundia-se muito e a grande velocidade
por exemplo
o destino das mãos e da cabeça de cícero
um dos últimos senadores republicanos
impecavelmente limpas, cabeça e mãos,
porque ambivalentemente sujas
de versos retóricos, meias paixões
e manobras de conspiradores
ambas terminaram cortadas e expostas na rostra
do fórum romano
por frases ditas e palavras escritas
contra generais com mãos pelo menos
tão sujas como as dele

mas seria uma desculpa fácil dizer
que as palavras por que vivemos
não nos podem erguer acima
da sordidez do tempo
breve de uma vida humana

isto porque as mãos dos césares
que se seguiram não se confundem
por exemplo com as mãos de cesare
pavese o poeta cujas mãos repousavam
sobre o cachimbo perpetuamente aceso
nas manhãs de turim e assinavam poemas
e também as cartas que em 1935
o puseram na prisão por serem
de um teor antifascista
e terem sido trocadas entre ele
e subversivos famosos
uns quantos rapazes de vinte
e poucos anos como ele
[...]

domingo, 12 de maio de 2024

Salomé, aliás Bosch

 - leitura interrompida, na Zmab, em Julho de 23, ora retomada, alcançando-se e a p. 100

RECORTE:

     Por outro lado, existe Salomé. Salomé é tão rápida e eficiente que lhe chamam Bosch como se fosse uma máquina de lavar alemã. A verdade é que é robusta, fala pouco, age com eficiência, não reclama e em termos de delicadeza não desmerece em relação às outras cuidadoras. Percebe de aparelhos e algo mais. Esta manhã, achou que se eu não ligo a televisão, então o trambolho não tem nada que ficar a ocupar a mesa dificultando o acesso à janela e interferindo com o gravador. Melhor seria  guardá-la. Salomé perguntou - «O que lhe parece, Dona Alberti?» [...] Salomé decidiu, pegou no aparelho ao colo e enfiou-o no armário da roupa. Fechou a porta, satisfeita, como se tivesse eliminado uma peça de entulho do seu caminho. Quando pude dizer que sim, que seria melhor desembaraçar-me daquele óculo que me falava do destino do mundo como se fosse um aterro sanitário, já ela tinha decidido por mim. Obrigada, Bosch, aprecio pessoas assim. As fraquinhas podem chamar-se Indesit.

Lídia Jorge, Misericórdia, 2022, pp. 98-99