quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

(...) o papagaio que gostava de bolo de arroz (Dulce M. Cardoso)

 - de manhã, com sol e pouco frio, pelos transportes (735, sobretudo...), releitura deste número da «Granta», para decidir se vai ou não para a «Mesa das Trocas»...; do conto de D. M. C., ...

Excerto(s):
[...] A família vilã vivia na Rua Itapirapes, número 54, e tinha um papagaio que gostava de bolo de arroz. A minha mãe nunca tinha comido bolo de arroz, e quando provou gostou muito. Esse gosto acabou por ser responsável pela morte do papagaio.
[...] o papagaio que gostava de bolo de arroz [...] era um papagaio delator. Por estranho que pareça, a minha mãe ainda hoje jura que o papagaio que gostava de bolo de arroz era capaz de contar à tia síria tudo o que a minha mãe fazia e que a denunciava se em vez de limpar a casa a minha mãe fosse brincar com os vizinhos japoneses. [...}
     Todas as tardes a tia síria trazia um bolo de arroz ao papagaio, todas as tardes a minha mãe roubava um bocado do bolo de arroz, todas as tardes o papagaio fazia queixa, todas as tardes a tia síria batia na minha mãe. Assim aconteceu até que os vizinhos japoneses sugeriram que a minha mãe matasse o papagaio [...] a minha mãe garante que ela e os vizinhos japoneses coseram o rabo do papagaio com uma agulha e linha. [...]

Dulce Maria Cardoso, «O coração do meu mundo ou o papagaio que gostava de bolo de arroz, in Granta, n.º 6, 2015, pp. 163 - 177


sexta-feira, 30 de junho de 2023

Tempo e Selva, Herzog

 - de manhã, na ESPL. do D., atinge-se a p. 50 do livro de Herzog, iniciado ontem na FNC-COL; a representação da Categoria do Tempo é um dos Motivos mais conseguidos; por isso se parou no excerto que se transcreve, recortando-o, para  cumprir a extensão média do que se reproduz nestas Casas:

A partir de agora, há qualquer coisa que começa de forma quase acidental, como se um novo companheiro, permanente, tivesse chegado imperceptivelmente, um irmão natural do sonho [...]: um tempo amorfo de sonambulismo, embora tudo seja real, imediato, palpável, assustador e irrefutável no seu presente - a selva, o pântano, as sanguessugas, os mosquitos, a vozearia dos pássaros, a sede, a comichão na pele [...]. Um pássaro nocturno grita e passa-se um ano inteiro. Uma gota de água sobre a folha encerada de uma bananeira capta um raio de sol por um instante e passa outro ano. Um carreiro de milhões e milhões de formigas aparece da noite para o dia, vindo do nada, e segue por entre as árvores [...]; o desfile segue a sua marcha, imperturbável, durante muitos dias e desaparece tão abrupta e misteriosamente como surgiu, e mais um ano passa. [...]

Werner Herzog, O crepúsculo do mundo, Zigurate, 2023, pp. 50 - 51 

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Literária Infância nas Canárias

 Recortes da Leitura referida no «Alpa»:

- [...] E então, juntas, percorríamos de novo todo o caminho que tínhamos desenhado em ziguezague [...] porque a Isadora dizia que, se andássemos de  um lado para o outro nos cansaríamos menos, e começávamos a falar sobre uma vez em que fizemos chichi pelas pernas abaixo para saber o que se sentia, e fizemos chichi dentro de uma plantação de batatas de um vizinho da minha avó, [...] e rastejámos pelas terras mijadas e sem nos apercebermos eu e a Isora já estávamos perto da casa dos homossécsuais e já faltava pouco para chegar à venda e então a Isora perguntou-me se eu me lembrava da vez em que na escola deitámos um sumo de maçã na cabeça de uma menina de quem não gostávamos e nos apanharam. [...] Perguntei à Isora se se lembrava da vez em que na escola estávamos a brincar aos cães e ela tinha um cão que era Josito, o menino do Redondo, que era o Josito de gatas com uma corda atada ao pescoço e ele levantava a pata e fingia que mijava nas paredes da escola, nas paredes pintadas com desenhos das ilhas Canárias e com pessoas pequeninas vestidas com fatos de feiticeiro e de feiticeira e cachos de bananas e carroças com bois de romaria e batatas e morteiros de quando celebramos o Dia das Canárias [...]

Andrea Abreu, Pança de burro, Bertrand, 2023, pp. 43-44

domingo, 4 de junho de 2023

«Raça dos inúteis», «Signo Sinal», Vergílio Ferreira

 - bastante amarelado, o exemplar, de 79, que veio das Galveias, mas em bom estado, certamente pouco lido, e, ou, manuseado...; na ESP. do R., atingida, de manhã, a p. 30

RECORTE:

     [...] «Gostava dos livros, das artes, das ideias, pertencia à raça dos inúteis. Meu pai o pensava em voz alta com minha mãe, franzindo a boca, balançando as cabeças. Dos inúteis. Mas logo de pequeno - ele mo lembrava às vezes com comiseração. Metia-me num quarto, chamavam-lhe o quarto escuro [...] Livros de aventuras, folhetins dos jornais, ó suave encantamento da translúcida verdade - deixem-me comover. Era da raça dos inúteis, detestava o mundo excessivo, pesado de materiaçidade, espesso de cegueira, o eso, a espessura, sufocando a beleza que nele cintila. [...]

Vergílio Ferreira, Signo Sinal, Bertrand, 1979, p. 26

terça-feira, 23 de maio de 2023

«Ulisses», de Joyce: «atirem-se lá para dentro» (A. L. Coelho)

 - será agora que também R. se «atirará»a Ulisses»?, [finalmente e «já perto do FIM?»]; só no 73.º programa - «Volta ao Mundo....»;   A. L. C. se lhe «atirou»...; 

RECORTE(s):

«O livro de hoje assusta mais do que qualquer outro nesta «Volta ao Mundo»; como muita gente, larguei-o várias vezes. Mas, chegando ao fim, o mais importante será dizer a quem não o leu: «atirem-se lá para dentro» [...] E não ter medo dele é começar na primeira página e ir em frente, como em qualquer romance. Sugiro que não pesquisem [...] deixem isso para uma releitura. [...]

sexta-feira, 12 de maio de 2023

Confinado em Eboli; Carlo Levi

 - terminada a Era dos Quadrados, voltou a haver tempo para as Letras «não-Lusas» ...: alcançada a página 108 [de 239] .... desta obra-prima (de 1945), (1.ª obra de Carlo Levi), em recente reimpressão, vinda da BiblioPenha, e caracterizada, na ContraCapa como «[narrativa] na qual se mistura ficção, memória, registo sociológico, ensaio e literatura de viagens»...; «confere»; é tudo isso e não só... [...]

RECORTE (com excertos em Discurso Indirecto Livre):

   O presidente da Câmara reconhece-me e  chama-me. É um homem novo, alto, grande e gordo [...] É o professor Magalone Luigi: mas não é  professor. Ensina na escola primária de Gagliano; mas a sua principal função é vigiar os confinados da vila. Nesta tarefa ele põe [...] toda a sua energia e o seu zelo. Então não foi ele considerado por sua Excelência, o governador civil, como encontrou logo forma de me dizer com uma vozinha aguda de castrato que sai suave e satisfeita daquele seu corpanzil, o mais jovem e mais fascista entre todos os presidentes de Câmara da provincia de Matera? Não posso fazer menos do que congratular o professor. E este dá-me informações sobre a vila e sobre o modo como me devo comportar. Ali há alguns confinados, uma dezena ao todo. Não devo vê-los, porque é proibido. De resto, são gentalha, operários e assim. Eu, pelo contrário, sou um senhor, vê-se logo. [...] Mas como é que eu me fizera mandar para o confinamento? E logo naquele ano, em que a Pátria se engrandece. [...]

Carlo Levi, Cristo parou em Eboli, Livros do Brasil; pp. 24-25


quarta-feira, 10 de maio de 2023

«dois rios», Tatiana Salem Levy

 - leitura desta «narrativa gemelar», de 2012, terminada às 17 horas - com muitos «saltos» na «2.ª metade», aquela em que a narração de 1.ª pessoa passa de Joana para a Voz do irmão gémeo, Antonio - [...]

RECORTE(S):                              35

Depois de duas horas de caminhada, um longo corredor de palmeiras nos recepciona. Enormes caranguejos azulados afundam suas patas no mangue do lado esquerdo de quem chega. [...] Musgos se espalham por todos os cantos: pela igreja, o chafariz, os postes de luz, a bicicleta solitária, as casas abandonadas. O gramado cresce sem governo, há ferrugem nos bancos da praça, as heras sobem os muros das construções.
O cenário seria bonito, não fosse para mim a imagem escancarada da passagem do tempo. Dois Rios tornou-se um fantasma: as mesmas casas, a mesma praça, as mesmas ruas, carcomidas pelo abandono e a umidade.
Lembro-me de tudo. Mais do que eu imaginava. Vejo-me a correr com as outras crianças, a pipa no céu, os cães atrás de nós; vejo-nos a jogar amarelinha, a comer churrasco no gramado, brincar de esconde-esconde, de pega-pega. A pele vermelha descascando, as pernas cobertas por mordidas de mosquito, a roupa sempre suja de terra, rasgada por conta dos tombos que levávamos. [...]

Tatiana Salem Levy, dois rios, Tinta-da-china, 2012, pp. 56-57

quinta-feira, 4 de maio de 2023

«Um Nome», Barreto Guimarães

Um nome

O nome que tu transportas é o nome
onde és tudo. O nome: és
tu que o és. Em teu nome
tu és tu. É
um nome que te leva com
o seu número de letras a
certa altura maior do que um simples
nome em ti. Significa mais
significa: justiça
(dignifica-se a si mesmo) um tal nome
significa-te. Porque esse teu curto nome foi
um nome que cresceu
para continuares a ser nele
para seguir sendo
o teu.

João Luís Barreto Guimarães, O tempo avança
por sílabas, Quetzal, 2019, p. 66 (de Luz última2006)

[a pedido de M. J. C., R. vai enviando pequenos conjuntos dos poemas que «abriam  Quadrados...»; do conjunto de hoje, confiando que ainda não foi colocado em nenhumas das «Casas»...]

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Municipais Leituras...

 - é sair do «735» e seguir em frente; espaçosa, arejada e luminosa, está ali desde 2015, vinda do «Palacete Diogo Cão», onde estivera desde 65 (informou a FUNC.); nesta primeira visita veio «Perguntem a Sara Gross», na edição da colecção «Mil Folhas», do «Público»; também «Miniaturas», de Andreia Del Fuego, mas, ao chegar ao GALH, constatou que existia na EST. do CORR [...];
Well

quinta-feira, 30 de março de 2023

Michel René, aliás, Ilario Da

 - [pelas 10 e 30, na «Flor do I.» (M. S.) foi terminada a leitura desta «curta saga», agilmente narrada...]

Recorte do Excerto final:

[...] Quando a costa francesa apareceu, Ilario Da teve a impressão de que apenas naquele instante aquele país começava realmente a existir. [...] Ao chegar ao posto dos serviços de imigração, teve de aguardar na fila, longamente. Ao fim de uma hora, uma alfandegária perguntou-lhe:
    - Nome?
    Aquela pergunta enigmática despertou na sua memória um eco profundo. Se bem que estivesse longe da ditadura, longe dos carabineiros chilenos, foi assaltado pelo temor de ser procurado do outro lado do oceano. Pensou em vários nomes de empréstimo, em pseudónimos, em nomes de código, mas o único que lhe veio aos lábios foi aquele que todos os seus antepassados tinham repetido ante de si.
    - Michel René - disse.
     A mulher não levantou os olhos. Com um gesto negligente da mão que ia batizar de novo, numa só linha, toda a sua genealogia após ele, anotou na ficha:
    Michel René.

                                              Miguel BonnefoyUma herança, Asa, 2023, p. 191 [outro: AQUI]