sexta-feira, 26 de abril de 2024

(Impossível) Anonimato («Os Memoráveis»)

 RECORTE(S):

[...] Um do nós disse em plena reunião. Companheiros, por mim, não se referirá mais a minha pessoa, quando se falar do assalto ao aeroporto. [...] O protagonista que em mim houve, morreu. A partir de agora, quem assaltou o Aeroporto de Lisboa, na noite de vinte e cinco, quem manteve o céu encerrado à aviação durante toda a operação? Foram todos, isto é, cinco mil. Quem assaltou a Rádio Televisão? Cinco mil. Quem dominou o Quartel-General, uma vez que não foste tu, nem ele, nem eu? Foram eles, os cinco mil.[...]

LídiaJorge, Os memoráveis (2014), 2024, p. 98 

quinta-feira, 11 de abril de 2024

A madrugada (depois de Sophia)

A madrugada (depois de Sophia)

Veio sem mundo por vir.
Veio sem caução depois da noite velha.
Veio antes ou depois do pensamento, a parte animal
que lhe servia. Por dentro das casas
e nas ruas. Para não matar, os militares bebiam
o último litro de sangue das flores. Para não
matar, para inventar
a madrugada, quer dizer a violência de uma nudez.
Veio a espera dos corpos, quer dizer
a alegria. Veio a manhã solta
como malha na saia de uma rapariga.

                                                      Andreia Faria (em «Revolução já! Poesia Pública»)



domingo, 25 de fevereiro de 2024

Públicos Jardins, de Inverno (de «Canção Doce», Slimani)

- atingida a p. 113 (de 215) desta leitura Ràpida, na NAC., na P. da FIG.a;

RECORTE(s):
       Os jardins públicos nas tardes de Inverno. A morrinha varre as folhas mortas. O cascalho gelado cola-se aos joelhos dos meninos. Nos bancos, nas ruelas discretas, cruzamo-nos com aquelas pessoas que o mundo já não quer. [...]
     Os jardins públicos, nas tardes de Inverno, são frequentados pelos vagabundos, os mendigos, os desempregados e os velhos, os doentes, os errantes, os precários. Os que não trabalham, os que não produzem nada. [...]
      À volta do escorrega gelado, estão  as amas e o seu exército de crianças. Embrulhados em casacos de penas que os estorvam, os pimpolhos correm como grandes bonecas japonesas, com o nariz a pingar de ranho e os dedos roxos. Exalam nuvens de fumo branco que os maravilham. Nos carrinhos, os bebés ajaezados contemplam os irmãos mais velhos. [...] Batem com os pés só de pensar em escapar à vigilância das mulheres que os apanham com uma mão firme ou violenta, meiga ou exasperada. Mulheres de túnica africana no Inverno glacial

Leila Slimani, Canção doce, (2016), 2022, pp. 109-110

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

«brincar às palavras» (de «Nessa altura já cá não estamos»)

 - terminado só hoje de manhã, na ESP. dos Manos D. + A.; irá ou não para a «Mesa das Trocas»?

RECORTE(S):

     Por vezes fica muito entediada e brinca sozinha às associações de palavras. [...] Quando lhe surge uma palavra muito estranha, fica absorta e surpreendida a pensar nela. Acontece o mesmo em relação aos objectos a que essas mesmas palavras aludem. Acontece-lhe isso com alguidar, por exemplo. Que na sua cabeça é sempre um objecto de cor creme com uma risca castanha. E também com  a palavra macarrão, que tem a estranheza do erre, das estrias longitudinais da massa e do orifício ovalado das extremidades. [...] Como vive numa comunidade bilingue, surgem-lhe à mistura palavras em castelhano e valenciano [...]

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Na cadeira do barbeiro (em «A Arte de Driblar Destinos»)

 - já referidos, os Mestres Finezas de D. (o sr. F., da Calçada S. C. de S., e o sr. M., da Calçada da B. G.)...; para espanto de R., cá pelo Bairro, com tantos Neo-Barb.os, o preço do Corte não pára de baixar...; o narrador protagonista de «A arte...» explicita o final da narração da Primeira Infância, antes de nova mudança da  família para outra casa, noutra terra..., na p.195, no final do cap. 31: «Era o fim de Fevereiro e, como em um drible de Garrincha ficava para trás a minha primeira infância.»;

- [da BiblioPenha, a devolver no dia 9; atingida a p. 220, de 275]

RECORTE(S):

     Nessa época de vizinhança com o ancião Rodolfo, eu às vezes ficava de tocaia na porta da barbearia [...] Eu admirava a coragem da vítima cordata entregue àquelas mãos trêmulas manejando tesouras e navalhas, sem imaginar que logo seria  a minha vez. Aconteceu alguns dias antes do meu aniversário de dez anos, quando me sentei naquela cadeira, sujeitado ao desejo de minha mãe de me ver com um corte profissional. O longo pano preto que recebi sobre o peito, indo até cobrir as pernas, e o modo apertado como o barbeiro amarrou com um nó os cordões atrás do meu pescoço, me fez sentir prisioneiro, [...] Ao ouvir sons sibilantes, virei o olhar um pouco para o lado, a tempo de perceber as mãos trêmulas afiando a navalha  numa  tira de couro, e logo o movimento da lâmina reluzente em direcção à minha cabeça, no fito de aparar os pés do cabelo e desenhar a linha recta da nuca. Foram instantes terríveis, e tive pensamentos  de rebeldia, mas estava preso à cadeira e minha única defesa foi cerrar os olhos. [...]

Celso Costa, A arte de driblar destinos, 2023, p. 129

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Chiado: Ilha dos Galegos + Estátuas

 [...] No Martinho do Terreiro do Paço, havia um ar de província na Baixa, que lhe agradava: ele era cada vez mais Bernardo Soares no seu labirinto.
      Estás a ver, Zé, a nova estátua do Chiado?, ali em cima, na Ilha dos Galegos?» Sim, houvera discussão acesa sobre a identificação da personagem que tinha ou não dado nome ao sítio. «Já há duas, a cinquenta metros uma da outra. uma está de pé a outra sentada...» prosseguia o Fernando: «Eu vejo-as todos os dias do carro eléctrico. E eram contemporâneos, e amigos, Camões e ele, ao que dizem...» Na Brasileira criticava-se a estátua académica, [...] «E ainda veremos o Pessoa em estátua, nas imediações...» acrescentava ele, com um sorriso enigmático. Chegara tudo isto aos ouvidos do Pacheco que se embalara, como de costume. «Daqui a quantos anos, Zé, achas tu que será?»... Não lhe queres falar nisso?» [...]

José-Augusto França, José e os outros - romance dos anos 20, 2006, p. 180

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

La Coca, OU Picasso por Rentes de Carvalho

 - lido em menos de dois dias; a «segunda metade», hoje, no H. da Luz, e nos transportes, com vários «Saltos»; Roteiro evocativo Galaico-Minhoto, da Época do  Contrabando à do Tráfico...

RECORTE(s):

     Essas discrepâncias do meu viver devia-as em parte a Madame, que nessa altura já regressara a Paris e vivia então num maravilhoso apartamento do número 7 da Rue des Grands Augustins. Picasso, {,,,9, un très cher ami, era o vizinho de cima e eu, com a admiração que o artista me merecia. quando me cruzava com ele [...0 fazia-lhe respeitosamente a vénia.
     Até ao dia em que o acaso quis que  o mestre viesse a sair quando Madame e e eu íamos a entrar. [...] Um aceno e um olá do mestre, em seguida uma afirmação críptica da minha amiga: José c´est le jeune homme dont je vos ai parlé. Corei, confuso por não saber do que se tratava e Picasso rindo da minha confusão agarrou-me familiarmente pelo braço:
    - Tudo acaba por se arranjar, meu rapaz, o principal é saber usar la coca.
    Por um instante petrifiquei, julgando que o génio da pintura tivesse perdido o juízo e me recomendasse ali sem rebuço o vício da cocaína. Mas no momento seguinte já ele apontava para a minha cabeça:    
    - La coca, hombre, la cabeza, la tête! Só se precisa dessa. O resto... - e com um floreado Au revoir! saiu para a rua.      

J. Rentes de  Carvalho, La coca (2011), 2023, pp. 195, 196