sábado, 8 de outubro de 2011

O miúdo que pregava pregos...

... numa tábua, de Manuel Alegre, de 2010 - é «fininho», mas como não há espaço na Estante de M. A., tem «andado pela casa» -
reaparecido, um capítulo, «ao acaso»:

- Tão - diz o miúdo para o pai
- Tão o quê?
- Falta o tão.
- Estás a fazer-te de parvo.
- Não estou, não, falta o tão, o pai não leu o tão.
- Li tudo, qual tão qual carapuça.
- Tão curta a vida.
- Foi o que li.
- Não foi, não, o pai leu para tão grande amor curta a vida, por isso não dá certo, falta o tão.
Então o pai irrita-se:
- Este miúdo gosta de armar ao pingarelho.
- Talvez - diz a mãe -, mas tem ouvido.
Começa então uma espécie de jogo. O pai ora lê os versos completos, ora propositadamente omite uma ou duas palavras. Mas o miúdo que riscou o exemplar de Orpheu não se fica.
- Ao sol.
- Lá estás tu.
- O pai leu ó virgens que passais ao poente, mas não é assim, falta sol, ao sol poente, ó virgens que passais ao sol poente.
- Tens jeito para a métrica - comenta o pai sem se dar por achado.
- Ele conta pelos dedos - diz a mãe.
- Não pode ser, ninguém lhe ensinou.
- Há coisas que não se aprendem.
- Tudo se aprende, até os pássaros ensinam os filhos a cantar.
- Não é a mesma coisa - remata a mãe.

Manuel Alegre. O miúdo que pregava pregos numa tábua. Lx. D. Quixote, 2010, pp. 33-34