terça-feira, 29 de dezembro de 2020

«saudade pronta a vestir», por M. E. C.

 Recortes da Crónica de hoje - «A saudade espalhada», de M. E. C.:

     Uma coisa que a pandemia trouxe ao mundo inteiro foi a saudade.
[...] Ouço crianças que me falam como velhos numa casa de fados, evocando um Verão perdido, descrevendo o que perderam, lembrando-se de como era e duvidando que volte a ser assim.
     Já não interessam as idades: as cidades, as nacionalidades, as identidades. A todas custa. Todas se assemelham na consciência de não ter dado valor ao que desapareceu de um momento para o outro. Todas são capazes de conjugar a palavra saúde com a palavra saudade.
     É como se toda a gente tivesse perdido um ano. Nunca saberão como teria sido esse ano se não tivesse havido a pandemia. Teria sido como os anteriores? A saudade provoca esse engano de fazer caber todos os Verões num Verão roubado
[...]A saudade que até há pouco tempo era uma especialidade portuguesa tornou-se um passatempo universal – no sentido mais saudosista da palavra.
     Há aqui uma oportunidade única de negócio. Nenhuma literatura, nenhuma música, nenhuma azulejaria está tão impregnada de saudade como a portuguesa.
     Porque é que outras culturas hão-de perder anos a tentar tirar o sentido do que se passou, se a portuguesa já tem a saudade pronta a vestir?

 [sublinhados acrescentados]