quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Amor (sussurro do) - José Tolentino Mendonça

Um dos sete depoimentos prestados a António Marujo - no caso de J. T. M., por escrito -
( «Bíblia Sete histórias de uma paixão»
A leitura do livro sagrado do judaísmo e cristianismo apaixona pelas mais diversas razões. Como grande literatura, como texto profano, como história da humanidade, como manifesto de dúvida... Católicos, protestantes e uma judia contam a história da sua paixão.)

Sem comentários, claro:

Um sussurro acerca do amor
José Tolentino Mendonça, poeta e biblista
Se alguma vez tivesse de escolher entre ficar com as 7101 palavras da Carta aos Romanos ou com os 21 capítulos do Evangelho de João,seria como se me obrigassem a decidir pela minha mão direita ou pela esquerda. Se não pudesse mais ler o Profeta Isaías, se por alguma razão não mais me fosse dado ouvir as imprecações de Job ou a cítara de David, se banissem os prantos de Jeremias ou o humor de Jonas, se não pudesse voltar à espantosa originalidade de Jesus, sei que isso me tornaria um apátrida. Aceitar perder os livros da Bíblia seria além do mais conformar-se também a perder: a Catedral de Chartres, o ciclo das lendas arturianas, a vida de S. Francisco de Assis, a arte de Giotto, os mármores transparentes de Miguel Ângelo, a Divina Comédia de Dante, grande parte da lírica camoniana, As Flores do Mal de Baudelaire ou a pergunta ardentemente insolúvel que Dostoiévski gravou em O Idiota: “Haverá uma beleza que nos salve?”
Mas às vezes penso que à hora da minha morte gostaria que me lessem o Cântico dos Cânticos. O Cântico é um epitalâmio, um canto de admiração trocado por dois enamorados, um sussurro e uma extraordinária meditação acerca do amor. As mãos ardem folheando este livro, que pede para ser lido por dentro dos olhos, este livro humano e sagrado, este cântico anónimo que todos sentem seu, este relato de um sucesso e de um naufrágio ao mesmo tempo manifestos e secretos, esta ferida inocente, esta mistura de busca e de fuga, este rapto onde tudo afinal se declara, esta cartografia incerta, este estado de sítio, este estado de graça, este único sigilo gravado a fogo, este estandarte da alegria, este dia e noite enlaçados, esta prece ininterrupta onde Deus se toca.
Neste poema o amor está sempre a ser proposto e reproposto: nunca é construção terminada. Há um ritmo incessante de movimentos, quase vertiginoso em alguns momentos. O amor faz destes enamorados nómadas, buscadores e mendigos. Todo o diálogo de amor é uma conversa entre mendigos. Por isso a maior declaração de amor é ainda um pedido: “Grava-me como selo em teu coração, como selo no teu braço, porque forte como a morte é o amor” (Ct 8,6).
Por António Marujo , Público , P2 , Sábado ,24 de Dezembro de 2011, pp. 4-5