quarta-feira, 10 de maio de 2023

«dois rios», Tatiana Salem Levy

 - leitura desta «narrativa gemelar», de 2012, terminada às 17 horas - com muitos «saltos» na «2.ª metade», aquela em que a narração de 1.ª pessoa passa de Joana para a Voz do irmão gémeo, Antonio - [...]

RECORTE(S):                              35

Depois de duas horas de caminhada, um longo corredor de palmeiras nos recepciona. Enormes caranguejos azulados afundam suas patas no mangue do lado esquerdo de quem chega. [...] Musgos se espalham por todos os cantos: pela igreja, o chafariz, os postes de luz, a bicicleta solitária, as casas abandonadas. O gramado cresce sem governo, há ferrugem nos bancos da praça, as heras sobem os muros das construções.
O cenário seria bonito, não fosse para mim a imagem escancarada da passagem do tempo. Dois Rios tornou-se um fantasma: as mesmas casas, a mesma praça, as mesmas ruas, carcomidas pelo abandono e a umidade.
Lembro-me de tudo. Mais do que eu imaginava. Vejo-me a correr com as outras crianças, a pipa no céu, os cães atrás de nós; vejo-nos a jogar amarelinha, a comer churrasco no gramado, brincar de esconde-esconde, de pega-pega. A pele vermelha descascando, as pernas cobertas por mordidas de mosquito, a roupa sempre suja de terra, rasgada por conta dos tombos que levávamos. [...]

Tatiana Salem Levy, dois rios, Tinta-da-china, 2012, pp. 56-57