[…] Lembrou-se do alvoroço adolescente com que a olhara pela
primeira vez, então a si mesmo insinuou que o moviam simpatia e compaixão por
aquela pungente enfermidade, a mãozinha caída, o rosto pálido e triste, e
depois aconteceu aquele longo diálogo diante do espelho, árvore do conhecimento do bem e do mal, não tem nada que
aprender, basta olhar, que palavras
extraordinárias teriam trocado os seus reflexos, não pôde captá-las o ouvido, só repetida a
imagem, repetido o mexer dos lábios, contudo talvez no espelho se tenha falado uma língua diferente, talvez outras
palavras se tenham dito naquele cristalino lugar, então outros foram os
sentidos expressos, parecendo que, como sombra, os gestos se repetiam, outro foi o discurso, perdido na
inacessível dimensão, perdido também, afinal, o que deste lado se disse, apenas conservados na lembrança alguns
fragmentos, não iguais, não complementares, não capazes de reconstituir o discurso inteiro, o deste lado,
insista-se, por isso os sentimentos de ontem não se repetem nos sentimentos de
hoje, ficaram pelo caminho, irrecuperáveis, pedaços do espelho partido, a memória.
José Saramago, O
ano da morte de Ricardo Reis, 21.ª edição, 2013, Caminho, pp. 240, 241
[sublinhados acrescentados]