[de uma das gavetas do computador «reapareceu» o conto de Maria Ondina sobre a planta da «ressureição»...]
[porque longo, «imbricado», difícil escolher só os seguintes Recortes:
[porque longo, «imbricado», difícil escolher só os seguintes Recortes:
«A rosa-de-jericó» [truncado]
A lista dos nomes viera do
Brasil. Numa folha pautada, duas altas colunas em caligrafia apurada de
escrevente: Wilma, Wanda, Isa, Naíl…
A mãe está de mês e só come
galinha com arroz. Um passeiozinho pela sala, uma sesta no cadeirão de verga.
Janeiro. O fogareiro de brasas. O crepitar das bagas de eucalipto. A
entranhar-se nas cortinas de folhos, nas pregas da saia, no cabelo entrançado,
no xaile-manta, o perfume purificante do eucalipto. Combalida da longa noite de
concebimento, a mãe: noite de três prolongados dias e velas acesas noutras
velas ao Cristo do oratório. A velha Brígida franzindo a testa orvalhada de
suor, os seus pulsos grossos nas mangas arregaçadas: «Se passar de hoje
chama-se o doutor.». Fechada, a rosa-de-jericó, a sua raiz seca como uma corda,
como uma cobra, à tona de água na bacia do lavatório.
Cinco e meia. O homem entra,
apressado, o passo irregular. A carta de São Paulo? Onde estava a carta de São
Paulo? E se ela já tinha lido, se já tinha escolhido.
─ Oh! Eu gosto é de Maria que é a Mãe de Jesus.
Pois podia pôr-se-lhe Maria
seguido de outro nome. Examina a lista. Um supor, Neusa. Ou Nelma.
─ Qual achas mais bonito? ─ arrepia o bigode preto com a unha alongada do dedo mendinho.
─ A avó dela, a minha mãe, era Maria do Socorro.
─ Ora, esses nomes já não se usam.
[…]
— Marília é um nome poético, mas
o desta quero que seja exótico — procura-lhe a mão.
O fraco dele pelo exótico, o invulgar,
o raro. […] Hélia, Elza, Hércia. Que lhe parecia Hércia?
Não responde. Não ouve o que ele
diz. Pondera: que têm a ver nomes assim rebuscados e fantasiosos, que têm tais
nomes a ver com uma pobrezinha que veio ao mundo por um pouco sufocada?
— Zilda, Zélia, Zuraida. São
nomes nobres, sabes? Nomes reais. De princesas árabes!
Desatenta, ela.
— Então? Qual gostas mais? Dói-te
alguma coisa? — debruça-se sobre a mulher. Continua: — Leda. Denise. Deborah.
Nome judaico, Deborah?
[...]
A rosa-de-jericó, entretanto… Lá
na bacia, enrodilhada e sem dar sinal, a flor da corola em cruz. Quando
desabrocha, a gente apercebe-se, lembra-se? Se se lembrava! Como papel de seda
a desdobrar-se. Como beijos… [...]
Sentado à sua beira, de lista em
punho, ele pronuncia os nomes como se a saboreá-los. Com devoção. […]
Menina, Sr.ª Brígida? Um suspiro,
a sua fala. O médico desinfectava os ferros, lavava minuciosamente as mãos, os
braços, na bacia donde fora afinal retirada, sem chegar a desabotoar-se, a
planta do parto. Uma moleza a acometê-la, uma madorna. E a criança tão
caladinha, tal se nado-morta.
Ele fez uma pausa.
─ Ainda não me disseste se te agrada algum destes nomes. Não te
agrada nenhum? ─ […]
Ela de mês, a menina ao peito a
beber-lhe as forças. E já meio esquecida, quem diria, de tudo quanto suportava
e de tudo quanto ainda lhe faltava suportar. Não obstante… O que lhe custava a
aceitar era o facto de a flor-do-deserto não ter chegado a revivescer. A
negação, a falência da planta da fecundidade, esse vegetal valimento, essa
efígie fiel durante tantas gerações. Por que seria? Ali no cadeirão de verga, a
cismar na rosa-de-jericó, a mãe. As mulheres do meu sangue, que me conste,
felizes nos partos, parece. Porquê assim comigo? Por que a menina não queria
nascer, sabe-se lá? Por que eu, a sua progenitora, preferindo um menino?
Estreita a filha ao colo, compadecida.
Mea culpa. Mea maxima culpa. O seu
ventre retraído de insubmissão e susto.
Na sala, o homem lê os nomes alto
e destacadamente para que ela, no quarto interior, os possa escutar e
escolher. E tal a entoação e o ardor da sua voz que a exaspera e a comove ao
mesmo tempo. Como quem recitasse, fervoroso, uma oração. Como quem declamasse
versos. Zaida… Rosenda… Belinda…Bluette…
Maria Ondina Braga. A rosa-de-jericó ─ Contos escolhidos, 1994, pp. 137-141