quinta-feira, 5 de maio de 2022

«seios» + «pulmões» , M. do Rosário Pedreira

 - foi o «poema da SEMANA»,  do recente livro de M. do R. P., que: 
- «salvou» o 1.º de Maio;
- foi oferecido às MM.s, nos Qd.s da Frente
- foi lido nas «Aberturas» dos Qd.s 402 [...]:

seios

Mãe, oxalá eu nunca tivesse largado a tua mão:
com o menino ao colo, fez-se a estrada maior do
que o meu desespero, amarrotou-se de velho meu
coração tão claro. Eu tinha catorze anos antes
 
do estrondo, catorze anos e meio antes do teu
grito, quinze anos cumpridos quando afastei o
véu dos teus cabelos: se me dizias sempre que não
fosse para longe, porque pediam o contrário os
teus olhos parados? Ainda por cima, mãe, chegar
 
ao campo foi como bater a uma porta cansada ꟷ
mil tendas que eram velas remendadas, barcos para
ficar de novo pelo caminho. Trouxeram-nos mantas
cheias de perguntas; tentaram-me com doces
para me pôr no lugar; mudaram ao meu irmão
a fralda com as mãos frias. Mãe, eu disse-lhes que
 
o menino era meu; e agora, quando ele procura os
teus seios no meu corpo sem formas, cubro com
o teu véu os meus cabelos e canto-lhe baixinho
canções de açucar. Não sei que idade tenho, mãe,
mas oxalá eu nunca tivesse largado a tua mão.
 
Maria do Rosário Pedreira, o meu corpo humano, 2022 (abril), p. 45

- artigo, 

«Maria do Rosário Pedreira: um evangelho laico de louvor ao humano»

 de Helena Vasconcelos, no «Ípsilon», de 5 de Agosto

 - foi enviado o poema seguinte para o Grupo do Costume e para a S. A., 14 de Maio de 2024: 

pulmões

[sobre a fotografia de uma criança encontrada morta numa praia da Turquia]

O meu pai chamou-me e pediu-me que escolhesse
um brinquedo - só um - de que gostasse muito; e
que separasse outro brinquedo para o Aylan, que
ainda não sabia escolher, mas só um, e tinha de
ser pequeno. O meu pai explicou-me que nessa
 
noite ia fazer de tudo quase nada numa trouxa
leve; porque assim, quando o Aylan e eu caíssemos
de sono, ele e a minha mãe poderiam levar-nos ao
colo sem ficarem para trás. Havia lágrimas nos olhos

do meu pai quando contou que, na manhã seguinte,
teríamos de deixar a nossa terra; mas logo se 
recompôs, dizendo que Kobanî também já não era
bem a nossa terra, que a nossa casa era a ruína da

nossa casa, que toda a Síria não passava de um tímpano
exausto de tanto estrondo e dois olhos cansados,
mas tão cansados, de chamas e de sangue. O meu pai

achava que o Aylan era demasiado pequeno para
compreender e, por isso, dissera-lhe apenas que
iríamos dar um passeio de barco, que passaríamos
o dia numa praia e que, enquanto eu e a minha mãe
nadássemos no mar até ficarrmos sem fôlego, ele
 
podia simplesmente deitar-se de bruços na areia,
como tanto gostava. O meu pai nunca nos mentiu.

 
Maria do Rosário Pedreira, o meu corpo humano, 2022 (abril), pp. 46-47