- «aleatoriamente», os «recortes» com que se «fechou» o «O Ano da Morte...» (o «diálogo» entre...):
Silêncio
na noite e no autocarro, os poucos passageiros não falavam, ninguém reparava na
labuta do motor, mas Lídia estendeu um canto do olho na direção do livro que
José levava, El Año de la Muerte de Ricardo Reis. E, nesse mesmo instante, de
repente, uma revelação instintiva, José apenas deu conta do que disse depois de
o verbalizar, estive em Lanzarote.
Estas
palavras foram o centro de um vórtice, um uníssono cósmico, confluência de
necessidade e sentido, Lídia olhou diretamente para o rosto de José.
Grata
pela coerência, pela prova infalível do livro em castelhano, a pele de Lídia
descansou. Noites mal dormidos, isolamento, apenas o filho, a ama, as
freguesas, o dono do minimercado duas ou três vezes por semana, de surpresa, a
tocar-lhe com o joelho, a emperná-la, como queres que chegue à caixa?, apenas
os desconhecidos do autocarro, de manhã e à noite, apenas um telefonema por
semana para a vizinha da avó em Cabo
Verde, a avó a não querer apoquentá-la, os primos durante segundos, trinados
crioulos, mana.
Estive
em Lanzarote, não achei meio de avisar-te. Antes de dizer uma palavra, Lídia
folheou o livro. Sim, as páginas todas escritas em castelhano. Lídia queria
acreditar. Olhando para José, saciando a vontade que contrariou desde o início,
falou por fim, saímos aqui.
José
sentiu dificuldade em adaptar-se a estas palavras simples, parecia-lhe
demasiado, mas Lídia avançava já pelo corredor do autocarro, não podia perdê-la
de vista, hipnotizado pela elegância daquele corpo sólido, pernas grossas,
braços grossos, mulher densa.
A
noite outra vez, temperatura, trevas e iluminação pública. A euforia de José
conseguia satisfazer todas as perguntas. Naquela estrada de Sacavém, caminho
inclinado, José descrevia uma ilha, talvez correspondesse a Lanzarote, ou
talvez não. Indiferente à geografia, recuperou o brio da sua força. Ao longo do
dia, não obstante a insistência, apenas bebeu água da torneira, três copos
cheios. Além disso, aquele livro misterioso salvou-o. Estive em Lanzarote,
genial. […]
José Luís Peixoto, Autobiografia,
Quetzal, Lisboa, 2019 (Julho), pp. 132 - 134