domingo, 24 de março de 2013

Leonor e a «vocação»

[deslocado de Alpabiblio, assim escapando ao «Apaga-Apaga»]

Na Mão Esquerda de T., caminho do Paraíso 1213, vem agora diariamente um pesado volume: As Luzes de Leonor, de Maria Teresa Horta
«Polifonia de Vozes», em curtas narrativas de prosa lírica.

Foi «Empréstimo-Oferta» de Eli. De boa vergonha ficou T. Vai pela p. 66.

«Antes de recolher à cela e apesar da aragem fresca que o outono levanta, Leonor vai sentar-se debaixo da árvore da cerca do convento, rosto entre as mãos abertas a cobrirem a extrema palidez: nauseada, estômago tolhido por uma intensa cãibra de fome que a faz dobrar-se sobre si mesma. Há dois dias que não come, jejum imposto por disciplina religiosa; apenas a água parece aliviá-la, refrescando-lhe os lábios ressequidos e gretados.
Aterrada com o que lhe dizem as madres, secretamente manobradas pelos jesuítas entretanto expulsos, de o convento representar para ela o único refúgio seguro à perseguição de Sebastião de José de Carvalho e Melo, passara as últimas semanas na igreja, reflectindo na possibilidade de tomar o véu.
As noites leva-as sem dormir, seguindo apaixonadamente a leitura dos poemas e outros escritos de Teresa de Ávila, o que a conduz à meditação e à espiritualidade, mas também à consciência da tibieza da própria vocação.
[...]
É tarde, a hora de deitar passara há muito. Iluminando a noite, o céu espalha os seus luzeiros ao longo do negrume do vale. Sentada nas macias folhas do outono que entretanto chegara, Leonor fixa as estrelas lá no alto, sentindo a mão do pai na sua, como quando em liberdade ambos iam pelos jardins da casa a descobrir os astros. E finalmente sabe com exactidão aquilo que quer fazer na sua vida.
Então recua, recusa, nega-se a professar.
Para prisão basta-lhe a que lhe impõem há seis anos, sem que jamais, por um só dia, tenham conseguido proibir-lhe o sono. A partir desse momento a decisão está tomada: escolhe o destino entretecido pela poesia.
Não carece de outra desmesura.»

Maria Teresa Horta. As Luzes de Leonor. Lx, D. Quixote, Maio de 2011, pp. 64-65